Por Vitor Vogas / ES 360 / Foto: Divulgação
Deputado radicaliza ataques a Casagrande: “O Casa é pra Exu”. Governo responde
Casagrande foi ofendido dentro das suas duas grandes casas – inclusive, literalmente, dentro da Casa do Governador. Tratando-o por enganador, deputado viu “altar para Exu botado por Casagrande” em plena residência oficial e “culto de matriz africana” em exposição no Palácio Anchieta
Nem Lucas Polese nem Capitão Assumção – deputados do PL que respondem na Justiça a ações por danos morais movidas pelo governador. Inesperadamente, o deputado mais “ofensivo” no time da oposição ao governo de Renato Casagrande (PSB) na Assembleia Legislativa tem sido, com sobras, Alcântaro Filho (Republicanos). Nos últimos tempos – notadamente, nos últimos dias –, o parlamentar de Aracruz radicalizou nos ataques pessoais contra o governador. Em duas situações seguidas, insultou Casagrande dentro dos espaços institucionais de trabalho do próprio governador – uma delas, literalmente, dentro da casa do chefe do Executivo Estadual.
A primeira investida, na última sexta-feira (10), se deu dentro da antiga Residência Oficial da Praia da Costa, hoje mais conhecida como “Casa do Governador”. A segunda, no mesmo dia, teve por palco o Palácio Anchieta. E já havia antecedentes, em postagens feitas por Alcântaro em suas redes sociais de setembro para cá.
As ofensivas têm fundo pretensamente religioso. Em alguns dos posts mais recentes, o deputado só faltou chamar o governador de “anticristo”. Mas não ficou muito longe disso. Bolsonarista e (não vamos parafrasear Bolsonaro) profundamente evangélico, o deputado tem chamado Casagrande de “falso cristão”, enquanto acusa o Palácio Anchieta e a Casa do Governador de terem sido convertidos em “espaços de doutrinação religiosa”, voltados, segundo o deputado, à apologia ou à propagação de cultos de religiões de matriz africana que ele considera contrários aos “valores cristãos”.
Tudo se insere no contexto da marca maior do mandato de Alcântaro na Assembleia Legislativa, aonde chegou na eleição de 2022: uma cruzada pessoal contra religiões de matriz africana. Longe de estar isolado, inclusive no plenário da Assembleia, o deputado tem se dedicado (alguns diriam: de modo patológico) a perseguir e combater o que enxerga como “doutrinação” de alunos nas práticas de tais religiões.
Nessa cruzada iniciada em Aracruz, o pseudocruzado aracruzense conta com um fiel escudeiro: o vereador Pastor Dinho Souza, da Serra, filiado ao Partido Liberal (PL).
No último dia 10, uma sexta-feira, os dois fizeram juntos uma espécie de blitz durante a visita guiada de uma turma de 12 estudantes de uma escola estadual à galeria de artes do Palácio Anchieta. Os alunos foram conhecer e aprender com a exposição Línguas Africanas que fazem o Brasil, patrocinada pela Vale e concebida pelo Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo (estado governado por Tarcísio de Freitas, do mesmo partido de Alcântaro).
O Museu da Língua Portuguesa é um dos mais importantes espaços culturais do Brasil – disparadamente, o mais importante no campo da linguística. Desde 2021, a exposição teve cerca de 250 mil visitantes em São Paulo. No Palácio Anchieta, deputado e vereador interpretaram a mostra como “doutrinação religiosa no Palácio Anchieta” – frase com que abriram seu post nas redes sociais.
Durante as filmagens feitas por sua equipe, Alcântaro e o vereador da Serra “colaram” no grupo de alunos e professores durante a visita escolar. A perturbação foi tamanha que a diretora da escola chegou a registrar um Boletim de Ocorrência contra ambos, reportando desrespeito e intimidação durante a atividade cultural e pedagógica, segundo ela previamente autorizada, legitimamente realizada e perfeitamente sintonizada com os currículos oficiais.
“Flagramos movimento Exu no Palácio Anchieta”, postou Alcântaro. “Eles têm pretexto de linguagem, mas eles não estão querendo focar em linguagem. É mais um ato de doutrinação, e dentro do Palácio Anchieta! Dentro da sede do poder no Estado do Espírito Santo!”
O vereador Pastor Dinho foi além, mirando no próprio Casagrande e colocando em xeque a fé cristã do governador (que é católico): “Isso aqui é um culto de religião de matriz africana, de maneira escancarada! É o governador do Estado, que se diz cristão!”
O escudeiro de Alcântaro foi prescritivo, exortando “cristãos” do Espírito Santo a não votarem em Casagrande (para senador) no ano que vem. Usou a velha estratégica retórica de expoentes desse filão como Magno Malta e Nikolas Ferreira: a de que um “verdadeiro cristão” não vota em determinado candidato. “Tudo isso com a anuência do Governo do Estado! Que fique claro aos cristãos que apoiaram o senhor Renato Casagrande, aos cristãos que pensam em apoiá-lo: ou vocês não são cristãos ou ele tá enganando muito bem os senhores.”
“O Casa é pra Exu”
No mesmo dia, Alcântaro foi à “Casa do Governador”, transformada no atual governo em um espaço cultural aberto ao público.
Na humilde opinião do colunista, foi uma ótima iniciativa do governo, especificamente da Secult, na atual gestão. A propriedade é linda e, por décadas a fio, ficou interditada aos capixabas a quem o governo serve. Hoje, sedia eventos culturais e esportivos muito legais, de corridas de ruas a espetáculos musicais e feiras literárias como a do último fim de semana (em sua primeira edição). Isso sem falar na exposição permanente, com várias instalações artísticas a céu aberto, espalhadas pela propriedade. Foi justamente uma dessas instalações que motivou o outro ataque frontal de Alcântaro a Casagrande. A obra é tratada por ele como um “altar a Exu”.
“O governador botou um altar pra Exu”, acusa o deputado, no vídeo postado por ele. O título do post é “Faz carta para os cristãos, mas o Casa é pra Exu”, enfatizando uma suposta “contradição” do governador.
No vídeo, Alcântaro também chama Casagrande de “enganador”: “Fui na residência oficial do governador, que deveria representar o povo capixaba, mas virou palco da esquerda, bem distante do compromisso que Casagrande fez com o povo cristão para ser reeleito. Eu não me calarei! E, no que depender de mim, o governador não engana mais ninguém!”
No mesmo vídeo, o deputado ataca a programação da Feira Literária por ter incluído palestra com a escritora Cidinha da Silva, autora do livro de contos Um Exu em Nova York. “Nós não aceitaremos que o cristão capixaba seja enganado pelo governador Casagrande”, declara o parlamentar.
A resposta oficial do Governo do Estado
O governador Renato Casagrande não quis se manifestar pessoalmente sobre os ataques sofridos. Em nota oficial, o governo assim se pronunciou:
O Governo do Estado do Espírito Santo, por meio da Secretaria da Cultura (Secult), informa que a exposição “Línguas Africanas que fazem o Brasil”, em cartaz no Palácio Anchieta, em Vitória, integra o conjunto de ações culturais voltadas à valorização da história que forma a identidade brasileira.
A mostra, que já esteve em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, apresenta de forma educativa e interativa as influências das línguas africanas na formação do português falado no Brasil. Palavras, expressões, símbolos e elementos culturais que ilustram a contribuição dos povos africanos na construção do nosso idioma e na riqueza da cultura nacional.
O Palácio Anchieta, assim como todos os espaços culturais públicos do Governo do Estado, é um ambiente plural, voltado ao diálogo, à reflexão e ao aprendizado, reafirmando o compromisso com a promoção da cultura.
Nota pessoal
O colunista foi à Feira Literária na Casa do Governador no último domingo (12), com sua tradicional família heteronormativa capixaba: acompanhado de esposa e filha. Lá, viu centenas de outras famílias. Em sua esmagadora maioria, certamente, famílias cristãs – é só ver o Censo do IBGE. A Casa do Governador estava lotada. Era o Dia das Crianças, inclusive.
Com sua filha de oito anos, o colunista assistiu, embevecido, à apresentação da Orquestra Filarmônica do Estado, executando canções de trilhas sonoras de animações clássicas da Dinesy. Sua filha de oito anos adorou.
O colunista assistiu (pela metade) à palestra de uma escritora e a recitais de poesia. Reencontrou amigos e colocou a conversa em dia. No gramado, fez um piquenique com mulher, filha, irmão, cunhada e sobrinha de cinco anos. Saiu de lá com muitos livrinhos infantis, que já começou a ler para (e com) sua filhinha de oito anos.
Não resistiu e comprou também dois livros “de gente grande” para ele mesmo: um romance de Pepetela (autor africano, de Angola) e outro de Graciliano Ramos: o clássico Angústia. O colunista aprecia o autor. Adora Vidas Secas, Memórias do Cárcere e, principalmente, S. Bernardo. Mas nunca leu Angústia. É o que sente ao ver manifestações como as descritas neste texto.
Reflexão: conhecer não é (se) converter. Que “doutrinação” é essa?
Supondo que o deputado tenha alguma razão (ainda não vi a exposição “Línguas Africanas” no Palácio Anchieta) e haja mesmo elementos de cunho religioso em algumas das obras e explicações que integram a referida mostra… Ora, ninguém sairá dali convertido a uma nova religião por isso – do mesmo modo que ninguém se torna católico por visitar o interior de uma igreja ou assistir a um batismo, nem judeu por conhecer por dentro uma sinagoga ou participar de um bar mitzvah.
O Convento da Penha é patrimônio cultural do Estado do Espírito Santo. Algum evangélico alguma vez terá descido de lá católico, após visitar e conhecer o templo?
Se você não é católico, pode perfeitamente visitar o Duomo de Florença, ou a capelinha da esquina, e admirar sua arquitetura, observar suas obras de arte, até assistir ao culto, aprender sobre uma outra crença, sem passar a professá-la.
Se uma criança ou adolescente assiste a “Thor”, da Marvel, não sai da sala de cinema convertido a antigas crenças de matriz escandinava (mitologia nórdica). Se vê animações como “Hércules” ou “Moana”, da Disney, não é “doutrinado” na mitologia grega e polinésia, respectivamente, nem troca a própria fé por tais cultos politeístas. Se lê uma história do Papa Capim, personagem de Maurício de Souza, não passa a acreditar em Jaci nem a orar para Tupã.
E outra: por essa mesma lógica da alegada “doutrinação”, a exibição diária de novelas bíblicas em série, em rede aberta de televisão (um produto cultural de massa), não poderia ser classificada, por não cristãos, como “doutrinação massiva na religião cristã”???
Conhecer não é (se) converter. Lição não é conversão. Que ideia de “doutrinação” é essa?
A homenagem no Dia do Professor
Alcântaro, com esse tipo de discurso, frequentemente argumenta que não persegue professores. Apenas busca “proteger as crianças” contra a “ideologia de gênero”, a “doutrinação religiosa”, a “doutrinação ideológica”…
Na última quarta-feira (15), Dia do Professor, o deputado postou uma homenagem à categoria. Publicou que “professor é herói”. A reação de sua bolha dá a exata medida do que seu público acha dos professores, ou do que seu público espera dele, ou do que seu público está sendo induzido por ele mesmo a pensar em relação aos professores…
Os posts de Alcântaro (como os mencionados acima) costumam atingir milhares de curtidas. A mensagem de congratulações ao magistério atingiu… 60 likes. Não, você não leu errado. Não foram 6 mil. Não foram 600. Foram apenas 60 curtidas à homenagem do deputado aos professores.