Por Vitor Vogas / ES 360 / Foto: Divulgação
O que diz a lei aprovada pela Câmara e sancionada pelo prefeito Pazolini; os argumentos da Defensoria Pública em ação civil pública e os do juiz que tomou a decisão; a análise do colunista
A Justiça do Espírito Santo suspendeu os efeitos da polêmica lei municipal de Vitória que impõe a afixação de cartazes, em unidades de saúde, com mensagens que desencorajam a prática do aborto (de maneira indiscriminada, em qualquer situação, incluindo as hipóteses legais). Proposta pelo vereador Luiz Emanuel Zouain (Republicanos) e aprovada pela Câmara Municipal, a lei foi sancionada no dia 19 de setembro pelo prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos), sob forte controvérsia. Na quinta-feira (9), o juiz Carlos Magno Moulin, da 5ª Vara da Fazenda Pública Estadual, decidiu pela suspensão imediata da lei, atendendo a um pedido formulado pela Defensoria Púbica do Espírito Santo, em ação civil pública ajuizada na última quarta-feira (8).
A ação foi proposta por oito defensores públicos, incluindo a coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, Fernanda Prugner, a coordenadora do Direito à Saúde, Maria Gabriela Agapito da Veiga, e a coordenadora da Infância e Juventude, Adriana Peres Marques dos Santos. A ação foi protocolada em face da Prefeitura de Vitória, do prefeito Lorenzo Pazolini e da Secretaria de Saúde de Vitória.
Para o juiz Carlos Magno Moulin, autor da decisão, imperava cessar com urgência os efeitos da lei contestada, por ser manifestamente inconstitucional e incompatível com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Segundo o magistrado, “a norma viola frontalmente a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e a obrigação do Estado de garantir atendimento público baseado em evidência científica e em respeito à autonomia das pessoas”.
A lei agora suspensa (Lei nº 10.218/2025) obriga todos os estabelecimentos de saúde sediados em Vitória, públicos ou privados – hospitais, instituições de saúde, clínicas de planejamento familiar, unidades de saúde etc. – a afixar “placas ou cartazes informativos acerca do aborto”, em tamanho legível. Estes devem conter os seguintes dizeres:
“Aborto pode acarretar consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito”;
“Você sabia que o nascituro é descartado como lixo hospitalar?”
“Você tem direito a doar o bebê de forma sigilosa. Há apoio e solidariedade disponíveis para você. Dê uma chance à vida!”
Em caso de não afixação dos cartazes, a lei determina punições ao estabelecimento ou ao gestor responsável pelo órgão: advertência no caso do primeiro descumprimento; e multa de até R$ 1 mil, nos casos de reincidência. A regulamentação da lei ficou a cargo da Prefeitura de Vitória.
Na decisão da última quinta-feira, o juiz Carlos Magno Moulin determinou que o município de Vitória deixe de afixar, nos estabelecimentos de saúde de sua rede própria, as placas ou cartazes de que trata a lei em questão. O município também deve deixar de cobrar o cumprimento das obrigações impostas pela lei aos estabelecimentos de saúde sediados em Vitória, sejam eles públicos ou privados, conveniados ou não ao SUS. Deve, ainda, abster-se de aplicar qualquer das sanções previstas na norma.
Numa “virada de mesa”, o descumprimento de qualquer das decisões acima importará na aplicação de multa diária de R$ 5 mil por ato, sem prejuízo de responsabilização pessoal do agente público ou privado. Ou seja, agora, a partir da decisão, as autoridades responsáveis estão sujeitas a uma multa diária (cinco vezes maior) se mantiverem, nos respectivos estabelecimentos, os cartazes previstos pela lei – e não se deixarem de afixá-los.
Para o autor da decisão, a imposição de mensagens de teor estigmatizante em unidades de saúde viola diretamente a busca por um atendimento digno, sem discriminação e sem constrangimentos morais, na medida em que reforça estereótipos de gênero e perpetua práticas discriminatórias combatidas por convenções internacionais de que o Brasil é signatário. Segundo ele, a lei expõe “diariamente mulheres e profissionais de saúde a situação de constrangimento institucional e de violação de direitos”.
Em conclusão, de acordo com Moulin, a inconstitucionalidade e a inconvencionalidade da lei são “evidentes”, pois a norma afronta a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, o direito à informação e à liberdade de consciência e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em tratados assinados pelo nosso país.
Análise: os problemas e perigos gerados por essa lei, pensando em um caso concreto
A lei aprovada na Câmara e sua sanção pelo prefeito de Vitória foram acompanhadas de grandes controvérsias.
Em primeiro lugar, o mais gritante: as “placas ou cartazes informativos” não fazem menção alguma às hipóteses em que o aborto é permitido do ponto de vista legal, ou seja, às situações extremas em que a gestante simplesmente tem o direito, protegido pela legislação brasileira, de realizar o aborto no sistema público de saúde, sendo acolhida, assistida e acompanhada por profissionais preparados para isso e sob condições médico-hospitalares adequadas.
No Brasil, há três casos em que a mulher (ou menina) grávida pode realizar o aborto legalmente: risco à vida da mãe, gravidez resultante de estupro ou feto anencéfalo. As duas primeiras exceções estão previstas no Código Penal (art. 128); a terceira, em jurisprudência do STF.
Outro problema é que as mensagens, além do teor moralizante e intimidatório, contêm algumas informações que são, no mínimo, discutíveis. Uma delas é a de que o aborto pode causar infertilidade.
Segundo a professora Elda Bussinger, especialista em Saúde Coletiva, ouvida em reportagem de A Gazeta, isso em geral ocorre, justamente, quando o aborto é praticado de maneira clandestina, e não na rede pública profissional de saúde. Quando o aborto legal (frisando: nas exceções previstas em lei), a partir de autorização judicial, é praticado em um hospital habilitado, em estrita observância dos devidos procedimentos, a gestante, segundo Bussinger, não sofre esse tipo de sequela.
Agora, suponhamos que uma menina de 11 anos, moradora de Vitória, tenha sido vítima de violência sexual e engravidado em decorrência do estupro. Legalmente, neste país, ela tem o direito de abortar. Ao buscar assistência médica após ter descoberto a gravidez, em sua primeira consulta na unidade de saúde de seu bairro, essa criança dará de cara com o cartaz intimidatório cujo texto omite seu direito ao aborto legal. A vítima poderá se sentir constrangida a nem sequer cogitar a hipótese de realizar o aborto legal, como teria o direito de fazer.
Além disso, a hipótese de “problemas psicológicos”, contida em uma das mensagens, é bastante relativa. Se um aborto, em teoria, pode deixar marcas ou danos psicológicos na menina que aborta, o que dizer de uma gravidez indesejada, decorrente de um estupro, para a mente de uma menina que se verá compelida a levar a gravidez até o fim, mesmo não tendo idade nem maturidade para se reconhecer como gestante ou como mãe?
Há um risco ainda pior: suponhamos que, no limite, essa mesma menina, intimidada no equipamento público de saúde (local onde, ao contrário, deveria encontrar acolhimento), acabe levando adiante o aborto, mas em uma clínica clandestina… Se a ideia era coibir o aborto, o tiro do legislador terá saído totalmente pela culatra. O aborto legal terá sido, de fato, coibido (não obstante sua legalidade); o clandestino terá sido encorajado. O aborto, de qualquer maneira, terá sido praticado, mas em prejuízo bem maior para essa menina revitimizada.
Os argumentos da Defensoria Pública do Espírito Santo
Os argumentos da Defensoria podem ser resumidos em nove, a saber:
1. Tal normativa, sob o pretexto de orientar gestantes, cria obstáculos, reforça estigmas e atua como forma de violência simbólica institucional, incompatível com os princípios constitucionais da dignidade humana e do direito à saúde;
2. O Município de Vitória é incompetente para legislar sobre o tema, uma vez que a matéria é de competência privativa da União, conforme os arts. 22 e 24 da Constituição Federal, por tratar de direito penal e de política nacional de saúde;
3. A norma municipal não suplementa, mas contradiz frontalmente a legislação federal, criando barreiras ideológicas e desinformativas;
4. A imposição das mensagens constantes da lei afronta vários artigos da Constituição da República, por violar a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e a proteção integral de crianças e adolescentes, especialmente meninas vítimas de violência sexual, submetendo-as à revitimização;
5. A Lei Municipal nº 10.218/2025 representa também afronta aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos;
6. A norma impugnada desconsidera o dever estatal de garantir o acesso humanizado e livre de discriminação aos serviços de saúde, convertendo o espaço público de cuidado em ambiente de coerção e humilhação;
7. A norma questionada reforça estereótipos discriminatórios e constitui exemplo de violência institucional de gênero;
8. É necessária a adoção de medidas educativas e de publicização dos direitos reprodutivos das mulheres, para reconstruir uma cultura institucional pautada na ciência, na ética e na igualdade, mediante campanhas de informação e conscientização sobre os direitos sexuais e reprodutivos e sobre o atendimento humanizado no SUS;
9. A eventual afixação dos cartazes previstos na lei configura dano moral coletivo, pois caracteriza violência simbólica e institucional contra as mulheres e contra os profissionais de saúde.
Os argumentos do juiz
No início de sua decisão, o juiz Carlos Magno Moulin registra que sua análise não adentra as searas religiosa, moral e ideológica, pois nesses casos estaria desvirtuada qualquer intervenção do Poder Judiciário.
Para o juiz, é “patente” a incompatibilidade entre o conteúdo prático da lei e os preceitos firmados pela Constituição Federal (dignidade, saúde, proteção integral) e por convenções internacionais assinadas pelo Brasil, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).
O juiz lembra que, ao aderir a esses tratados, o Brasil assumiu o compromisso jurídico e político de assegurar a igualdade de gênero e de eliminar toda forma de discriminação e violência contra a mulher, inclusive a simbólica e institucional. Tais tratados vinculam o Estado brasileiro em todas as suas esferas: federal, estadual e municipal.
“O Estado brasileiro não pode violar os direitos reprodutivos e por omissão na prestação de serviços adequados de saúde a uma gestante, determinando a adoção de políticas públicas que assegurem atendimento digno, sem discriminação e sem constrangimentos morais. A lei municipal ora impugnada contraria frontalmente tais compromissos, pois, em vez de garantir ambiente de acolhimento e neutralidade científica, impõe às mulheres em situação de sofrimento e vulnerabilidade mensagens incompatíveis com os parâmetros internacionais de proteção”, sustenta Moulin.
Segundo o autor da decisão, os Estados signatários da Convenção Americana têm o dever de adotar “medidas positivas para eliminar práticas discriminatórias e garantir às mulheres o pleno exercício de seus direitos, livres de coerção, estigma e violência institucional”. Já a CEDAW, que trata da mulher e da saúde, “é expressa ao determinar que os Estados Partes tomem todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação no campo dos cuidados de saúde e assegurem às mulheres acesso igualitário aos serviços médicos”.
Ainda de acordo com Moulin, a lei municipal também é inconstitucional por invadir espaço normativo de competência da União. “A interferência municipal não é abstrata, pois ela incide diretamente sobre a conduta de gestores e profissionais de saúde, impondo-lhes obrigação positiva de expor mensagens de cunho coercitivo, sob pena de advertência e multa previstas no próprio diploma municipal”.
Para ele, era preciso agir rápido, pois “a demora na adoção de medida cautelar produzirá lesão grave e de difícil reparação à esfera dos direitos fundamentais (revitimização, constrangimento institucional de profissionais que devem obedecer a protocolos técnicos), circunstância que recomenda a intervenção preventiva do Judiciário para obstar danos que se consumarão a cada dia de vigência e de aplicação prática da norma. A manutenção dos efeitos deletérios da lei produzirá, assim, dano contínuo e acumulativo”.
Finalmente, no entender do juiz, “a retirada temporária dos cartazes e a suspensão da aplicação das sanções administrativas preservam o ambiente hospitalar como local de acolhimento e de neutralidade científica”.