Por Vitor Vogas / ES 360 / Foto: Divulgação
Senador está pagando para ver, colocando em xeque o próprio Poder Judiciário do país, que, se “passar pano” para o flagrante desacato, correrá o risco de sair desmoraeslizado do episódio. Aqui, analisamos o contexto, os riscos e as consequências da viagem turístico-política não autorizada
É difícil analisar as ações e palavras de Marcos do Val (Podemos-ES). Há alguns anos, o senador capixaba mantém comportamento tão atípico, tão inclassificável, tão fora da normalidade política, tão desbordante do que poderia ser entendido como uma linha normal de conduta, que desafia qualquer tentativa de racionalização de seus atos e declarações.
No ano passado, o senador capixaba se esforçou muito para que o ministro Alexandre de Moraes decretasse duras medidas cautelares contra ele, como o bloqueio de R$ 50 milhões e nova suspensão de suas redes sociais, afrontando sistematicamente o STF e a pessoa do ministro em postagens dirigidas à sua bolha no Instagram e outras redes. Agora, no episódio da viagem não autorizada para fora do país e em suas declarações desde então, o senador triplica a aposta na afronta.
A afronta é à Justiça pátria. A aposta também é contra ela. Do Val está pagando para ver, colocando em xeque o próprio Poder Judiciário brasileiro, que, se “passar pano” para o flagrante desacato, correrá o risco de sair desmoraeslizado do episódio.
Do Val está fazendo de tudo para, em caso de retorno ao Brasil, ser alvo de medidas mais gravosas (no limite, a prisão preventiva), como um exemplo pedagógico de que ordem judicial precisa ser cumprida, e a Justiça, respeitada. A insubordinação explicitamente manifesta pelo senador no episódio abre um perigoso precedente, o qual, se relevado, pode inspirar um surto de desobediência coletiva: só sou obrigado a respeitar decisão contra mim se eu concordo com ela e a considero “válida” e “eficaz”; se acho que “não vale”, posso muito bem ignorá-la.
Nos vídeos de Do Val que circularam nos últimos meses pelas redes e grupos de Whatsapp, sobressaem rasgos de megalomania e uma incontroversa tendência à paranoia. Suas declarações não dão lugar a dúvida: ele está inteiramente convencido de que é, ao mesmo tempo, vítima do sistema e herói solitário a combatê-lo, em uma cruzada pessoal.
O senador se concebe e se apresenta como um injustiçado justiceiro, perseguido pelo sistema, como um grande incompreendido e, acima de tudo, como um verdadeiro herói lutando, incansavelmente, contra a tirania da “ditadura da toga” e perseverando, obstinadamente, na infatigável defesa da liberdade de expressão e dos reais valores democráticos (ameaçados, em seu ponto de vista, pelo STF, mas representados por Jair Bolsonaro). Seria Do Val um grande herói solitário e incompreendido? Fato é que ele segue, inabalável, em seu embate permanente contra o STF e, notadamente, Moraes.
Como chegamos aqui?
Em junho de 2023, por ordem do ministro Moraes, Do Val foi alvo de mandados de busca e apreensão. Em inquérito sigiloso, sob a relatoria do ministro no STF, o senador é investigado pelos crimes de divulgação de documento confidencial, associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa. O inquérito trata da suposta obstrução de investigações a respeito de organização criminosa e milícias digitais. Na mesma data, também por decisão de Moraes, o ex-instrutor de segurança ficou impedido de usar redes sociais – onde se concentrava, basicamente, sua atuação política.
Em maio de 2024, Moraes permitiu que Do Val voltasse a acessar e utilizar seus perfis nas redes sociais. O que fez, então, o senador nos três meses seguintes, tão logo recuperou o direito? Pôs-se a fazer, regularmente, novos ataques direcionados ao STF e a Moraes. Em um dos vídeos, disse que “o cerco estava se fechando” contra o ministro e que o acionaria em “tribunais internacionais”. Mais que isso: o senador passou a ser investigado por suspeita de participação em um núcleo que viria operando para intimidar, via redes sociais, delegados da Polícia Federal como Fábio Shor, que atuavam no inquérito da tentativa de golpe de Estado e outras investigações contra Bolsonaro e aliados.
Por conta disso, em agosto de 2024, Moraes determinou o bloqueio de R$ 50 milhões em contas bancárias de Do Val e voltou a suspender as redes sociais do senador. Entre outras cautelares, também proibiu-o de sair do país, obrigando-o a entregar seus dois passaportes: o normal, comum a todo cidadão brasileiro, e o diplomático, conferido pelo Itamaraty a algumas autoridades, como senadores da República. Do Val entregou o primeiro, de fato apreendido e bloqueado. O segundo continuou com ele (a pergunta que todos se fazem é como ele pôde mantê-lo). “Ele disse que não estava com o documento na ocasião”, informa matéria do UOL, primeiro veículo a noticiar a viagem de Do Val, na noite da última quinta-feira (24). Aparentemente, ficou por isso mesmo.
Em dezembro de 2024, as cautelares de Moraes foram referendadas pela Primeira Turma do STF, por unanimidade. Em março deste ano, ao apreciar recurso de Do Val, os ministros decidiram manter o bloqueio dos dois passaportes do senador, em nova decisão unânime. Portanto, ele seguiu proibido de deixar o território nacional.
No dia 15 deste mês, a defesa de Do Val solicitou formalmente a Moraes autorização para ele viajar aos Estados Unidos com a companheira, a filha e a enteada. Também comunicou à presidência do Senado que se ausentaria do país (informação confirmada à coluna pela assessoria da Casa). O pedido foi negado por Moraes no dia seguinte (16), conforme apuração do g1. “Cumpre ressaltar que cabe ao requerente [Do Val] adequar suas atividades às medidas cautelares determinadas e não o contrário. Diante do exposto […] indefiro o pedido feito por Marcos Ribeiro do Val”, escreveu o ministro, segundo o g1.
Na noite da última quarta-feira (23), portando seu passaporte diplomático, o senador embarcou com destino a Miami, estado da Florida, no sul da terra de Trump, do Mickey Mouse e do Pateta. O voo partiu de Brasília e fez escala em Manaus. Com a família, o senador foi para a cidade de Orlando, onde fica a Disney World – e, especificamente, o Magic Kingdom (Reino Mágico). Afirma estar em viagem de férias com a família e que seu retorno ao Brasil está previsto para o dia 3 de agosto.
De acordo com apuração da Folha de S. Paulo, a defesa de Do Val só foi notificada da decisão de Moraes na quinta-feira (24), um dia após o desembarque em Miami.
Os riscos do desacato e as provocações frontais do senador
Independentemente da motivação da viagem, do pedido do senador ao STF e da data da notificação da resposta de Moraes, a determinação segue a mesma e a ordem não foi revogada: ele estava proibido de deixar o país; sob nenhuma hipótese, poderia ter viajado para o exterior. Ao fazê-lo, portanto, o senador desobedeceu a uma ordem judicial e, assim, à própria Justiça brasileira. É um ato de insubordinação à ordem constitucional. Se um cidadão se sente no direito de desrespeitar uma ordem da Justiça, sentir-se-á no direito de descumprir qualquer outra ordem. Estará acima da Justiça.
Na nota oficial divulgada por sua assessoria, o senador dá a entender que é por aí mesmo… Numa interpretação muito pessoal, considera que as medidas cautelares de Moraes contra ele são ilegais – logo, ele não é obrigado a cumpri-las. Na nota, destaca-se um trecho que é preciso colocar em relevo:
“[…] não há, em qualquer dos autos que envolvem o parlamentar, medida judicial válida, específica ou eficaz que restrinja sua liberdade de locomoção, tampouco decisão de suspensão de passaporte ou retirada de prerrogativas parlamentares” (grifo nosso).
E ainda:
“A tentativa de imposição de tal restrição, sem base legal expressa, constitui violação direta do art. 53 da Constituição Federal [imunidades parlamentares], bem como dos tratados internacionais de proteção aos membros do Parlamento reconhecidos pelo Brasil. Situação documental e diplomática plenamente regular”.
Os adjetivos “válida” e “eficaz”, adotados por Do Val, são o ponto-chave do raciocínio. Existe, é óbvio, decisão judicial que restringe a “liberdade de locomoção” de Do Val (para qualquer outro país), bem como decisão específica de suspensão dos seus passaportes. Mas ele não as considera “válidas”, ou seja, para ele tais decisões não valem (por ilegais), logo não precisam ser cumpridas: são ordens “ineficazes”.
Repito: isso parte de uma interpretação pessoal e subjetiva do próprio alvo da ordem judicial. Se esse tipo de argumento for aceito, abrir-se-á precedente para o caos e a subversão do Estado de Direito: cada réu, denunciado ou investigado, em qualquer instância judicial, sentir-se-á no direito de acatar ou não qualquer ordem judicial, conforme seu próprio entendimento. “A Justiça me obrigou a pagar aqui esta multa, mas não vou pagar não, porque para mim essa decisão não vale e não tem eficácia…”. E assim por diante. O inconformismo deve ser materializado em recursos, não em puro e simples desacato.
Uma velha máxima ensina: “decisão judicial se cumpre”. Num Estado de Direito, pode ser discutida, é claro, e questionada pela defesa daquele que sofreu a decisão, no terreno da própria Justiça, que é o foro para isso, e com os instrumentos legais oferecidos pelo próprio sistema jurídico. Dizer “não acho que devo obedecer e pronto” é um precedente subversivo e perigoso que desmoraesliza a Justiça brasileira e pode dar a senha para atitudes em série nessa linha, por todos que se sintam injustiçados ou contrariados com qualquer decisão desfavorável.
Do Val diz estar em viagem de férias (o que pode mesmo estar no roteiro, já que uma coisa não exclui a outra), mas o pacote é turístico e político. A esta altura, claro está que não se trata só de um “bate e volta” para a Disney, “vou ali pra relaxar um pouco e já volto”. Desde que pôs os pés em solo estrangeiro, tirando o máximo proveito da recuperada atenção da mídia nacional, o senador tem transformado sua viagem – especificamente, o fato de ter conseguido sair do país sem dificuldades – em um glorioso ato de declarada rebeldia política.
Se restava alguma dúvida quanto à determinação de Do Val em afrontar explicitamente o STF, é preciso ler com atenção seu primeiro post publicado em uma conta no Facebook após o desembarque, marcado por tom tão triunfante quanto desafiador. É, da primeira à última linha, uma provocação frontal ao ministro Moraes.
Cada palavra exala, com indisfarçado orgulho, um sentimento de triunfo pessoal sobre o STF e, em especial, sobre o seu “algoz”:
Depois de dois anos e meio de perseguição impiedosa por parte de Alexandre de Moraes — que tentou me calar, me impedir, me destruir e até cancelou ilegalmente o meu passaporte, num ato desesperado de abuso de poder.
Mas o tempo, a verdade e a justiça sempre vencem.
Na mesma semana em que Alexandre de Moraes teve seu visto suspenso pelo governo americano — um fato que trará graves consequências diplomáticas e pessoais para ele e sua família — os Estados Unidos tomaram outra atitude.
Reconheceram, reafirmaram e ampliaram minha função diplomática.
E mais: me acolheram oficialmente como cidadão americano.
Enquanto ele encara o peso das suas próprias decisões,
eu sigo minha missão, com dignidade, honra e a verdade como aliadas.
A mensagem foi dada ao mundo:
Quem persegue, cai.
Quem defende a verdade, prevalece.
A justiça pode tardar — mas quando chega,
ela é implacável.
Na mesma linha, em primeira declaração ao UOL, ainda na quinta-feira, o senador “decretou” não só a derrota como o fim de Moraes:
“Estou dentro da lei, seguindo a lei. Se tinha um bloqueio, como é que eu saí? Tem que perguntar pra Polícia Federal. Ligue para a Polícia Federal e pergunte”, afirmou o senador. “Isso vai mostrar que Alexandre está derrotado, já acabou. Acabou Alexandre. A decisão é ilegal.”
Em um vídeo gravado por ele, diante da entrada de outro parque temático, o senador afirmou: “Não estou aqui fugindo, estou curtindo e dando atenção à minha filha aqui, no Parque Universal Orlando. E Alexandre de Moraes recebeu com quinze dias de antecedência informações de onde eu estaria, qual era o meu voo, o hotel em que eu estou e até os ingressos que eu comprei [para os parques]. E olha que eu não respondo a nenhum processo, absolutamente nenhum. E é inconstitucional a apreensão do passaporte”.
De novo: a suposta inconstitucionalidade da apreensão do passaporte entra no campo subjetivo da interpretação do senador.
Conclusão
A resposta imediata de Moraes – possivelmente, apenas a primeira – veio na quinta-feira: o ministro determinou o bloqueio das contas, dos cartões de crédito e da chave-Pix de Do Val e da sua filha (com ele na viagem), impedindo, na prática, qualquer movimentação financeira por parte do senador… que está se esforçando muito para ser preso.
A palavra “preso”, aqui, pode ter mais de uma acepção, a depender dos próximos capítulos: ou “detido” no Brasil (caso retorne a solo pátrio), ou “estagnado” nos Estados Unidos (caso fique de vez por lá, voluntariamente, numa espécie de autoexílio político)… seja como for, em qualquer das duas duas hipóteses, preso em seu castelo mental, como aquele da Cinderela, no Reino Mágico da Disney.