Por Vitor Vogas / ES 360 / Foto: Ministra Cármen Lúcia / Crédito: Nelson Jr./SCO/STF
A ministra Cármen Lúcia votou pela imediata anulação da Lei Estadual nº 12.479/2025, do Espírito Santo, mais conhecida como “Lei Antigênero”. A ministra é a relatora, no Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que pede a anulação da lei em questão. A norma estadual, vigente desde julho, permite que pais e responsáveis proíbam a participação dos filhos em “atividades pedagógicas de gênero” nas escolas públicas e particulares do Espírito Santo.
O voto da relatora foi disponibilizado nesta sexta-feira (21), às 11 horas, quando teve início sessão plenária virtual do Supremo. Para ela, a lei é inconstitucional. Por quê? É o que passamos a explicar a seguir, detalhando o teor do voto balizador de Cármen Lúcia. Abaixo, condensamos os principais argumentos apresentados pela ministra:
- Invasão da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, inc. XXIV da Constituição Federal);
- Violação aos princípios atinentes à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (direito à educação);
- Afronta ao princípio da isonomia, ao direito fundamental da liberdade de cátedra e à garantia do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;
- Violação aos princípios da dignidade humana e da igualdade;
- Dever estatal na promoção de políticas públicas de combate à desigualdade e à discriminação de minorias
Vício formal: invasão de competência
O primeiro problema apontado por Cármen Lúcia na lei é de ordem técnica: segundo ela, a norma estadual é formalmente inconstitucional, por vício de iniciativa. Basicamente, o estado do Espírito Santo não poderia promulgar uma lei que interfere nas diretrizes e bases da educação nacional, pois estados e municípios não têm competência para legislar sobre a matéria. Nesse caso, a competência é exclusiva da União.
“É formalmente inconstitucional a norma municipal ou estadual pela qual se legisla sobre matéria referente a diretrizes e bases da educação nacional, por invadir a competência da União, estabelecida pelo inc. XXIV do art. 22 da Constituição da República”, anota a ministra.
Citando trecho de voto do ministro Alexandre de Moraes em ação análoga, ela lembra que entes subnacionais não têm competência legislativa para a edição de normas que tratem de “currículos, conteúdos programáticos, metodologia de ensino ou modo de exercício da atividade docente”.
Extrapolação
Não é que estados e municípios não tenham autonomia alguma nem direito a voz nesse debate.
Na verdade, a Constituição da República (art. 24, inc. IX) conferiu à União competência para estabelecer normas gerais sobre educação e ensino, reservando aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios competência suplementar. Além disso, os estabelecimentos de ensino têm autonomia para elaborar e executar suas propostas pedagógicas com participação do corpo docente, respeitadas as normas do sistema nacional, nos termos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996.
No entanto, na visão de Cármen Lúcia, a Lei Antigênero do Espírito Santo extrapola a competência suplementar reservada aos estados pela Constituição Federal. Para ela, a norma estadual em questão, “a pretexto de regulamentar matéria de interesse local, interviu [sic] de forma indevida no currículo pedagógico submetido à disciplina da Lei Nacional n. 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”.
Segundo a ministra, “o legislador estadual, ao assegurar aos pais e responsáveis o direito de vedar a participação de seus filhos ou de seus dependentes em atividades pedagógicas de gênero e determinar que a instituição de ensino informe sobre quaisquer atividades pedagógicas de gênero e garanta o cumprimento da vontade dos pais ou responsáveis, ultrapassou as balizas constitucionais, pelas quais lhe é autorizada tão somente a complementação normativa para atendimento de peculiaridades locais, e criou norma específica em descompasso com a norma nacional”, afirma a relatora. Os grifos são nossos.
Para reforçar esse ponto, ela cita o parecer do advogado-geral da União, Jorge Messias, que opinou nos autos do processo. Para ele, a lei estadual em análise enfraquece a concretização das diretrizes e bases da educação previstas na LDB, ao tornar facultativa a participação de alunos do ensino básico em atividades pedagógicas com teor antidiscriminatório:
“A implementação da facultatividade do ensino de temas antidiscriminatórios no Estado do Espírito Santo ocorreu à revelia de qualquer previsão na legislação federal, em especial na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ao dispor em sentido diverso ao que prescreve a legislação federal sobre o tema, o Estado-membro criou um modelo que fragiliza a concretização nacional das diretrizes e bases da educação, desestruturando sua pretensão de uniformidade”.
Em conclusão, segundo Cármen Lúcia, “é formalmente inconstitucional a norma municipal ou estadual pela qual se legisla sobre matéria referente a diretrizes e bases da educação nacional, por invadir a competência da União”.
Violação de princípios constitucionais
Para além do vício formal, a ministra entende que a Lei Antigênero do Espírito Santo afronta uma série de direitos e garantias resguardados pela Constituição Federal, como a igualdade, a dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão, a proibição de censura e o combate a toda forma de preconceito e discriminação.
“A norma impugnada desatende a garantia da igualdade (caput do art. 5º da Constituição da República); o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (inc. I do art. 3º da Constituição); a dignidade da pessoa humana (inc. III do art. 1º da Constituição); a liberdade de expressão, manifestada pela proibição da censura (inc. IX do art. 5º da Constituição); a promoção do ‘bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação’ (inc. IV do art. 3º da Constituição)”.
Segundo Cármen Lúcia, o Estado tem o dever de promover políticas públicas de inclusão e de igualdade, mas leis como essa vão na contramão do cumprimento dessa obrigação. “Este Supremo Tribunal Federal assentou que a proibição genérica e geral de atividades pedagógicas de gênero não cumpre com o dever estatal de promover políticas de inclusão e de igualdade.”
De acordo com a relatora, o Supremo já assentou o entendimento de que “o conteúdo do direito à educação necessariamente abarca a obrigação estatal de capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, justa e igualitária”.
Nesse sentido, é dever das escolas combater todas as formas de preconceito e discriminação (inclusive no espaço escolar) e preparar seus alunos para a convivência democrática e respeitosa com as minorias sociais, numa perspectiva de educação plural voltada à formação cidadã, ao respeito à diversidade e aos direitos humanos. Ela cita voto anterior do ministro Moraes em ação similar:
“O exercício da jurisdição constitucional baseia-se na necessidade de respeito absoluto à Constituição Federal, havendo, na evolução das Democracias modernas, a imprescindível necessidade de proteger a efetividade dos direitos e garantias fundamentais, em especial das minorias”.
Cármen Lúcia também destaca trecho de manifestação, nos autos, do governador Renato Casagrande (PSB): “Como realçado pelo Governador do Espírito Santo, ‘o Estado tem o dever constitucional de agir positivamente para concretizar políticas públicas, em especial as de natureza social e educativa, voltadas à promoção de igualdade e de não discriminação’”.
Jurisprudência: precedentes em série
Antes de entrar no conteúdo do seu voto propriamente dito, Cármen Lúcia destaca que a questão já foi exaustivamente debatida no âmbito do Supremo, pois os ministros já se debruçaram em uma série de ações relacionadas a leis municipais ou estaduais, de várias partes do país, com objeto muito parecido. E o resultado tem sido sempre o mesmo: declará-las inconstitucionais. Ela mesma, em seu voto, enumera uma dezena delas.
“A questão posta na presente ação não é nova neste Supremo Tribunal Federal. Em 15.10.2025, no julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental ns. 466 e 522, em situação análoga à presente, este Supremo Tribunal, por unanimidade, declarou a inconstitucionalidade de leis municipais que vedavam, na rede municipal de ensino, a veiculação de conteúdos que incluam ‘ideologia de gênero’ e a utilização do termo ‘gênero’ ou da expressão ‘orientação sexual’”, exemplifica a relatora.
Ela cita voto anterior do atual presidente da Corte, Edson Fachin, que, “ao apreciar controvérsia semelhante”, opinou que é “inviável e completamente atentatório ao princípio da dignidade da pessoa humana proibir que o Estado fale, aborde, debata e, acima de tudo, pluralize as múltiplas formas de expressão do gênero e da sexualidade”.
Também cita voto anterior do ministro Cristiano Zanin, em outra ação análoga:
“A escola, portanto, precisa proporcionar um ambiente plural e de acolhimento para todos. A proibição estabelecida viola as liberdades individuais, deteriora a tolerância e acirra a discriminação, o que notadamente afasta o Estado Brasileiro dos seus objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV, da CF)”.
A ministra também menciona:
. Lei Municipal de Foz do Iguaçu (PR) que proibia a aplicação da “ideologia de gênero”, do termo “gênero” ou “orientação sexual” nas instituições da rede municipal de ensino;
Lei Municipal de Uberlândia (MG) que vedava a utilização da linguagem neutra na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas do município;
. Lei Complementar Municipal de Blumenau (SC), que proibia o uso das expressões “ideologia de gênero”, “identidade de gênero” e “orientação de gênero” em documentos complementares ao Plano Municipal de Educação e nas diretrizes curriculares;
. Lei Municipal de Novo Gama (GO), que proibia a divulgação de material com informação de “ideologia de gênero” em escolas municipais
Menciona, ainda, outras quatro ações já julgadas no STF, todas com o mesmo fundo, relatadas pelos ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.
Todas as leis caíram.
A sequência do julgamento
Os 11 ministros da Corte participarão do julgamento da ação, em sessão virtual iniciada nesta sexta-feira (21). As sessões virtuais do STF ocorrem eletronicamente, sem encontro presencial dos ministros. É um julgamento colegiado realizado de maneira assíncrona e remota. O relator disponibiliza o voto no sistema eletrônico do tribunal, e os demais têm um prazo para votar, manifestar-se ou pedir vista (o que suspende o julgamento). No caso concreto, o prazo irá até às 23h59 do dia 1º de dezembro, quando acabará a sessão.
Para o STF declarar uma lei inconstitucional, é preciso que a maioria absoluta de seus membros vote nesse sentido. Isso significa que pelo menos seis dos 11 ministros precisam votar a favor da ADI em exame para que a Lei Estadual Antigênero tenha seus efeitos anulados.
Até o momento da publicação deste texto, nenhum outro ministro havia apresentado seu voto.